"É uma experiência repetidamente confirmada que entrar na loucura é o melhor modo de saná-la, e que o ato mais profundamente terapêutico é algo assim como um exorcismo no qual se deixa sair a parte louca para que a pessoa possa descobrir o fundo de verdade implícito naquilo que parecia puramente destrutivo e irracional. Quem faz tal experiência descobre que não se tratava propriamente de loucura o que temia, mas que operava em sua percepção o preconceito de uma imagem de si que não permitia a espontaneidade e que o dissociava de seus simples impulsos agressivos ou sexuais animais que, ao renegar para as sombras, endemoninhava.”
Claudio Naranjo
O MITO
Dionísio é o Deus do Teatro, das festas, da embriaguez, da insânia, dos fluxos, dos ciclos, da terra, da carne e de tudo que funde o bebedor com a divindade. Único Deus do Olimpo, filho de uma mortal com Zeus, ele, desde o ventre materno, foi perseguido por Hera, esposa de Zeus. Pelas tramas de Hera, sua mãe, Sêmele, insistiu a Zeus que aparecesse para ela em sua forma divina. Zeus hesitou, mas acabou por atender o pedido da amante e ao aparecer em sua forma esplendorosa, Sêmele queimou de susto com seus raios e poder soberano. O Deus então tirou Dionísio com seis meses do ventre morto e colocou-o em sua coxa até que ele estivesse pronto para nascer.
Depois de adulto, Dionísio tornou-se louco, até ser curado por Cibele, quando, então, começou a instituir seus ritos religiosos, ligados à fertilidade, às terras, a sexualidade, ao vinho e as orgias.
Os ritos religiosos dedicados a Dionísio eram conhecidos como Mistérios Dionisíacos ou Mistérios de Elêusis. Eram utilizados agentes tóxicos, na sua maior parte vinho, para induzir transes que acabavam com as inibições. Sabe-se que os ritos se centravam num tema de morte-renascimento e que a maior parte dos praticantes eram mulheres. Acredita-se que elas entravam em transe e usavam música rítmica nos ritos, executando danças frenéticas, extáticas, muitas das vezes em volta da imagem de Dionísio. Nestas danças, elas lançavam suas cabeças para trás, expondo as gargantas, rolando os olhos e gritando como animais selvagens.
Dionísio sempre foi considerado pelos gregos como um deus subversivo, pois personificava a desobediência à ordem e à medida, a vida do instinto, a liberdade, o prazer sem limites e a inversão dos valores sociais.
O ASPECTO DIONÍSIACO DO CAMINHO
Podemos entender o aspecto dionisíaco do caminho de desenvolvimento como um processo de inclusão da sombra, de fé na parte animal e instintiva do ser humano e no aspecto sanador que a aceitação daquilo que é rejeitado traz para o sujeito. Também podemos observá-lo através dos processos de expansão da consciência que envolvem liberação, êxtase, o corpo e a sexualidade.
A embriaguez dionisíaca leva a um processo de cura através da loucura, fortalecido pela fé de que a melhor forma de se sanar a loucura é entrando nela, vivenciando-a profundamente, para assim, ultrapassar seu aspecto destrutivo e irracional e encontrar a verdade e a sabedoria implícitas nela. Algo como entender vivencialmente as camadas destrutivas de defesa e de limitação da personalidade para, ao prová-las na carne, descobrir que para além de suas aparências e neuroses, há uma virtude e um potencial de crescimento em seu fundo. Trata-se, portanto, de viver o corpo e aprender a habitar a própria carne, assumindo a responsabilidade e as consequências por tudo que é manifestado.
No trabalho pessoal é possível fortalecer o dionisíaco através da abertura para a possibilidade do risco, da conexão com o corpo, com as necessidades mais básicas e viscerais, com as emoções, os fluídos, a criatividade, a sensorialidade, os desejos, a fertilidade, a sexualidade e a conexão com o instinto.
Quando falo de risco aqui não estou falando de uma noção genérica, porque para cada um a zona de risco é uma, a depender das estruturas de defesas que compõe os diferentes tipos de personalidade. Assumir riscos, em geral, tem a ver com a possibilidade de escutar, questionar ou até mesmo desafiar os introjetos, mandamentos ou repressões internas e externas que prometem vantagens secundárias em troca do sacrifício da vitalidade, do prazer e da criatividade. Sendo Dionisío o deus que encarna a liberdade do espírito, podemos nos aproximar de seu arquétipo quando:
experimentamos a transparência e a presença em nossas relações;
nos abrimos para experimentar nossos impulsos mais viscerais;
nos expressamos verdadeiramente;
atuamos no mundo organicamente;
nos abrimos ao contato com o corpo, com a arte, o teatro, a música, com o aspecto selvagem da nossa natureza, com a nossa humanidade sem
dela nada excluir.
O estado dionisíaco se faz presente na validação do prazer e na possibilidade de ser o que se é, através da consciência e da presença, da permissão em fluir espontaneamente, aceitar o que surge e dar voz às diferentes partes renegadas de si.
Quando me permito ser do tamanho real que me cabe, assumindo as minhas fragilidades, dores e defesas egoicas, posso ganhar distância das projeções que faço pois começo a me alimentar menos de promessas de salvação e do medo de errar e ser punida por isso.
Nesse sentido, o arquétipo de Dionísio, com suas provocações e tentações, nos sacode para nos mostrar que somos menos inocentes e impecáveis do que imaginamos. Ele nos mostra as dores do nosso corpo rígido perseguindo metas insustentáveis regidas por um policial interior autoritário e punitivo. Ele nos mostra o quão distantes ficamos de nosso coração.
Do encontro com Dionísio, podemos sair mais inseguros, porque as falsas seguranças são desmascaradas, mas certamente saímos mais vivos e dispostos a cuidar da nossa real vulnerabilidade. Ele nos ensina sobre a importância de abraçar, honrar e viver o nosso instinto, o nosso animal interior. Ele nos ensina a encontrar um caminho concreto onde atravessar a dor e o sofrimento valha à pena.
Quando adentramos nos campos do dionisíaco, soltar o controle e entregar-se ao fluxo da vida não é uma escolha e sim a única saída ao desespero que é dar-se conta de que não há garantias, nem salvação e nem paraíso na Terra. Resta nos reconhecermos caminhantes, aprendizes, honrando a oportunidade de habitar esse corpo, regidos e inspirados pelo Mistério que nos circunda a cada segundo.
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