Falar sobre as águas internas é falar sobre o feminino, o que é um pouco difícil. A tendência é que suas descrições pareçam vagas ou clichês. No entanto, quando estamos realmente conectados com essa energia internamente, podemos sentir a vida que pulsa em nós. É muito mais fácil senti-la, experimentá-la do que descrevê-la. Para mim, a energia feminina é exatamente como a água, profunda, misteriosa, disforme, flexível, corrente, presente, fluída, impermanente, poética e sensível. Só existe no agora, no instante do sentir, na coragem para pulsar, gestar, criar, vibrar, se entregar ao fluxo da vida.
O segundo chakra está ligado ao nosso sistema de reprodução, à forma com que cada um tem de se vincular, à abertura para sentir à partir das vísceras, ao prazer, aos cordões, aos processos criativos, à fertilidade, aos desejos, às necessidades de encontro, de complementaridade, de fusão e de pertencimento.
Segundo Isha Lerner, "A essência desse chakra é a gestação e o fluxo, em equilíbrio entre o eu interior e o mundo exterior".
A partir desse chakra, vou entrar em reflexões acerca da nossa relação com o prazer e com as mais variadas formas de criação, que vão desde a concepção de filhos à criação de frutos dos nossos dons, talentos e formas únicas de habitar e fertilizar a vida que recebemos e que invariavelmente, passamos adiante.
PRAZER- ENTRE A CULPA, A REPRESSÃO E AS TENTATIVAS DE COMPENSAÇÃO
Viciados na roda cíclica de fugir da dor e buscar a qualquer custo o prazer, nos afastamos da nossa natureza mais profunda, não conseguindo desfrutar de verdade das delícias da vida e nem atravessar e curar as nossas dores mais estruturais. Se por um lado a cultura patriarcal e a religião nos prometem uma recompensa seja material ou celestial por abrirmos mãos dos prazeres mundanos e de nossas necessidades mais humanas e autênticas, nos consumimos de culpa ao não aguentar a “abdicação” e acabamos apelando aos pequenos e constantes prazeres compensatórios: comer, comprar, relações sexuais automatizadas, vícios, hiperatividade, remédios e os mais variados paliativos para atenuar a falta de conexão com nossos instintos mais profundos.
Aprendemos a negar nossos instintos, a reprimir as nossas reais necessidades e no entanto, contraditoriamente, acabamos nos tornando refém delas, da eterna insatisfação e desconhecimento mais profundo das motivações internas.
Carl G. Jung tem uma famosa frase que diz “Aquilo que negas te submete, àquilo que aceitas te liberta”. De modo que reprimir as necessidades vitais e instintivas de prazer ou tentar enquadrá-las ao que parece seguro e confortável ao ego, não acaba com a necessidade que pulsa internamente. Apenas a desloca para lugares mais inconscientes e desconhecidos dentro de nós. Não estou falando que devemos seguir nossos instintos a qualquer custo, sem ponderar mais nada. Isso seria insano e nocivo à vida em sociedade. No entanto, uma coisa é seguir os impulsos a qualquer preço, outra é reprimi-los e outra bem diferente é conhecê-los, experimentá-los e aprender a lidar com eles.
O prazer profundo não vem apenas pela mente. Vêm principalmente pelo corpo. É claro que a mente faz parte do corpo, mas enquanto ele estiver anestesiado, a mente pode muito pouco para além de fantasiar e iludir a si mesma. É através da sensorialidade, dos fluidos, da respiração, da ativação do corpo e da sensibilidade que podemos nos encontrar com nossas feridas e defesas mais primordiais para trabalhá-las e encontrar com nossa fonte de prazer, néctar de fertilidade e fluxo de liberação.
Sentir a partir das vísceras é sentir com o corpo e não com a mente. Algo que deveria ser simples e natural mas que nos é extremamente reprimido por múltiplas camadas da cultura, que cultua o corpo para domá-lo e não para integrá-lo e aprender com ele.
Nascemos de um ato sexual, corporal, físico, químico, natural. Mas tão logo nos “civilizamos” somos levados a esquecer do corpo, a esquecer das vísceras, a esquecer da nossa sensibilidade, para incomodar pouco e garantir segurança e pertencimento.
Desse mesmo modo, todas as portas para o feminino são negativadas e controladas pela nossa cultura: a sensibilidade afetiva, os sentidos, a natureza, os sons, os cheiros, os pêlos, a intuição, a vagina, o sexo, a maternidade, a arte expressiva, a criatividade, a experimentação, as transgressões, os destemperos que param de esconder os desequilíbrios atrás da máscara de boa aparência, a ira feminina que faz acordar e que tem o poder de transformar o que morreu em vida nova… Tudo o que foge às caixas, regras, leis, verdades, formas concretas, repetições, não pode ser comprovado pela ciência, não é validado pela religião, transgride as leis e portanto, seguindo a lógica vigente deveria ser banido, proibido e manchado.
Dentro desse contexto, nossa vergonha, nosso medo de não pertencer, de sermos julgados e acabar queimados nas fogueiras seja lá de qual inquisição nos convence de que o caminho para saúde está em se fechar para o sentir e se auto domesticar.
Até quando é possível suportar a aridez que nos blinda do contato corporal, visceral, da profundidade emocional? Até quando nossos egos vão nos convencer de que se adaptar e colocar um tapete bem acolchoado na nossa zona de conforto, vale a pena? Até quando o alto preço que está sendo pago com vitalidade vai seguir parecendo pouco?
É verdade que muitos de nós tememos o prazer, pois em certo sentido ele pode ser “perigoso”, especialmente se buscado como rota de escape e se não estiver acompanhado de uma boa dose de disposição em navegar pelos incômodos, medos, marcas inconscientes de dor e defesas internas, traumas e resistências bem profundas. Experimentar o prazer é arriscado, assim como viver também é.
Sempre há a opção de se tentar sustentar um quase eterno autocontrole protetor. É uma escolha. Para algumas pessoas, em alguns momentos, a única possível. É legítimo. É o que é. No entanto, invariavelmente, se em algum momento da jornada a vida não começar a bater duro para ver se aprendemos a nos flexibilizar, nos abrindo para sentir e crescer para além da couraça dura, uma hora, mais cedo ou mais tarde, a morte, seja simbólica ou concreta, seja a nossa ou a de alguém que amamos, o fará.
Não temos como fugir do prazer sem fugir do fluxo da vida. Viciar-se nele pode ser profundamente destruidor, mas reprimi-lo a todo custo traz uma esterilidade sem fim onde a vida perde a cor e a possibilidade de brotar. Para encontrar com algum equilíbrio é preciso primeiro estar aberto para sentir, para se conhecer sem se julgar ou se reprimir, aprendendo a se cuidar bem, a se sentir minimamente seguro para explorar a vida, indo de maré alta à maré baixa, com resiliência, disciplina, compromisso, humildade, conexão interna, abertura, fé e conexão com o fluxo da vida que nos trouxe até aqui.
Se você não se torna consciente de como e por que vias experimenta e expressa o seu prazer, provavelmente seus mecanismos inconscientes se apropriarão dele. A necessidade de sentir satisfação faz parte do nosso corpo, do nosso aparato instintivo e ou cuidamos de forma desperta dessa necessidade ou ficaremos reféns de suas repressões ou excessos.
O que te traz relaxamento profundo, satisfação, sensação de que vale a pena viver? Com que combustível você abastece seu tanque de energia vital e motivação para seguir? Você busca cegamente, você se contenta com pequenos prazeres compensatórios, você se reprime, você se vicia, ou você faz essa jornada consciente de se apropriar da sua humanidade e das suas necessidades viscerais? Para estar em dia consigo mesmo faz necessário acionar uma dose cavalar de coragem para se assumir humano, imperfeito, necessitado de mais amor e crescimento. Quem não conhece e não cuida das próprias necessidades, quem não acessa e assume a própria vulnerabilidade, acaba ficando refém dela, sem nem ao menos se dar conta disso.
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