CRIAÇÃO - ESVAZIAMENTO, ORGANICIDADE E FLUIDEZ
" Qual é esse processo do espírito e da semente, cheio de fé, que toca o solo nu e o torna rico de novo? Não tenho a resposta completa. Só sei o seguinte: aquilo a que dedicamos nossos dias pode ser o mínimo do que fazemos, se não compreendermos também que algo espera que a gente abra espaço para ele, algo que paira perto de nós, algo que ama, e o que espera que o terreno certo seja preparado para que ele possa se revelar. Estou certa de que, enquanto estivermos aos cuidados dessa força de fé, aquilo que pareceu morto não estará morto, aquilo que pareceu perdido também não estará mais perdido, aquilo que alguns alegaram ser impossível tornou-se nitidamente possível, e a terra que está sem cultivo está apenas descansando - à espera de que a semente venturosa chegue com o vento e com todas as bençãos de Deus.
E ela chegará".
Clarissa Pínkola Estés
Criação é, por definição, o ato de criar, dar existência, brotar e nascer do nada, conceber, facilitar a existência do novo, da vida, do futuro.
Conceber, Gestar e Parir um Filho é um ato de criação.
Empreender um movimento de transformação pessoal, coletivo, político, material é um ato de criação. Também o é cuidar e plantar um jardim, replantar uma floresta, sustentar um projeto, criar filhos, cuidar bem de uma casa e transformá-la num lar, trazer novos olhares para um mesmo tema, ativar as sensibilidades adormecidas (a própria e a dos outros), possibilitar novas forma de vida, de experiências e de existência…
São muitas as formas de criar. As potentes não vêm sem um grande preço de transformação, doação, abertura e coragem. Para se abrir para o processo de criação é necessário estar disposto a navegar por zonas novas, onde o conhecido torna-se mais distante e o espírito de aventura o verdadeiro aliado.
Toda vida nova que brota deixa para trás o passado que finda. A natureza da vida-morte-vida precisa do que morreu para ser adubo para as sementes novas que brotam. Sem fluxo, sem entrega, sem aceitação da impermanência, a fonte de vitalidade e de criação cessa. Não existe mágica. Quer se abrir e criar algo novo? Comece a se preparar e busque compreender do que você precisa se despedir.
Podemos nos inspirar para os nossos processos de criação, sejam eles de qualquer ordem, ao olhar para a origem da nossa vida como ser humano. Uma gestação, na maioria dos casos, acontece sem muito esforço direcionado. Acontece mais fluidamente quando duas pessoas estão entregues, relaxadas, abertas ao prazer e à fusão, ao amor, à comunhão de corpos e de alma. Em geral, não há nada a se fazer ativamente. Há que se cuidar, se manter saudável e íntegro para que o processo de multiplicação das células e desenvolvimento daquele ser siga seu fluxo natural. Há que não se atrapalhar, mas a verdade é que há também pouco ou nenhum esforço externo e ativo envolvido para a vida brotar. O processo deriva de outra lógica, orgânica, natural, instintiva a qual estamos muito pouco acostumados a acessar.
Mesmo nos casos em que o processo de gestação é interrompido naturalmente, em grande parte das vezes, não se acha a causa e invariavelmente não havia muito o que se fazer para evitá-lo. Quando nos reportamos à origem natural da vida, a verdade é que nossa capacidade de controlar o processo ativamente é posta em cheque.
Aprendemos a nos separar no Mistério, do Inominável, do Incontrolável, do Desconhecido. Aprendemos que devemos controlar tudo, nomear, classificar, entender científica e racionalmente e encontrar soluções para tudo. Aprendemos a buscar segurança desse modo, mas o que esqueceram de nos contar é que essa tentativa de controlar a vida é justamente o que rouba dela a sua essência, a sua fertilidade. O ego é repetitivo, automatizado, muito pouco criativo e plural. O medo da dor é seu maior combustível. Ele não cria, ele reproduz sempre mais do mesmo. Para se abrir para sua potência de criação e encontrar seu fluxo de vida essencial e original é preciso desafiar as lógicas egóicas e esse movimento tem um custo, que muitos de nós tememos pagar.
Muitas vezes um custo de se sentir nadando contra a corrente. Um medo de ver-se sem garantias, de contradizer aquilo que te promete segurança e vida eterna. É por isso que os artistas são atualmente tão necessários e ao mesmo tempo tão desvalorizados pela nossa cultura. Eles são mais do que nunca fundamentais pois são capazes de nos inspirar a deixar nossas zonas de conforto e buscar um encontro com um sentido mais profundo para estar aqui. Eles são tão desvalorizados pois o nosso ego coletivo não para de se inflar e o sistema desvaloriza a arte por temer sua transgressão e sua capacidade de desmarcar as lógicas falsas e as soluções que o marketing sabe tão bem nos vender.
Criar é encontrar novos caminhos a partir de dentro de si. É ousar refletir, se questionar, questionar o que você aprendeu, a forma como as visões de mundo lhes são transmitidas. Criar , em certa medida, é nadar contra corrente. É abrir fendas mais férteis num mundo estéril e cheio de falsas garantias, é buscar caminhos para além da anestesia e paralisia, é reconectar com a beleza, com a natureza, com o mistérios, com as mentes abertas, com as formas abstratas, com reflexões e questionamentos mais profundos.
Como diz Krishnamurti, “Não é sinal de saúde estar bem ajustado a uma sociedade profundamente doente”. Para sintonizar-se com a força vital de criação, com a natureza mais profunda onde existe a semente da vida, é preciso esvaziar-se de conceitos e pré-conceitos, é preciso abandonar em algum grau a necessidade de ser aprovado e validado por essa lógica vigente de automatização e alienação. É preciso se desenquadrar, poder ver-se estranho, múltiplo e plural como é a natureza da vida orgânica por ela mesma.
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