“Quando a vida se movimenta, os ossos da morte também se movimentam em solidariedade.
Quando a morte se movimenta, os ossos da vida também a seguem.
De modo semelhante, quando um ossinho minúsculo está deslocado, lascado,
deformado, com luxação, ele afeta a integridade do todo.
Quando a natureza da vida-morte- vida é reprimida numa
pessoa ou num relacionamento, ocorre o mesmo.
A vida segue claudicante, hesita, vacila, impede o movimento.”
Clarissa Pinkóla Estés- Mulheres que Correm com os Lobos
Escrevo num momento em que o coração se movimenta de um modo estranhamento vivo e, até mesmo por isso, incômodo. Estar vivo às vezes é incômodo. É como sentir que não se pode controlar nada. Há muitas vantagens secundárias em seguir num automatismo otimista, uma delas é não sentir incômodos, ainda que o preço que se pague seja deixar de sentir a vida pulsando.
Como boa pisciana com ascendente em touro, vivo essa contradição. Uma parte minha me convoca a buscar e explorar oceanos inteiros de sentimentos, sensações, pulsações, experiências e conexões. A outra parte só quer sossego, segurança, certeza, rotina, controle e garantia. Às vezes, essa segunda parte se dispõe a pagar qualquer preço para não sentir sobressaltos.
Entre, de um lado, saltos de peito aberto nesses oceanos infinitos do sentir e, de outro, freios de mão rapidamente acionados à toda velocidade, tenho vivenciado minha trajetória aqui na terra. E, nesse momento, meu trem passa pela estação “maternidade” e nela exploro as minhas mais profundas vísceras e as minhas mais intensas contradições.
Tornei-me mãe antes do nascimento do filho que hoje carrego em meus braços. Vivi uma primeira gravidez. Vivi uma perda gestacional bem no início. Vivi um aborto espontâneo retido. Retido por dois meses. Decidi esperar meu corpo sentir em qual hora estava pronto para soltar. Recebi apoio para isso. Paguei um preço emocional alto por isso também. Entrei num abismo dentro de mim nesse período. Abismo onde encontrei todo o meu medo da vida, toda minha pulsão de morte, muitas das minhas evitações em lidar com a realidade dos meus sentimentos reais, em lidar com todo o medo que me habitava. Toquei em lugares onde eu estava segurando a vida e a morte, ao invés de fluir por entre elas.
Foi muito difícil. Sentia uma conexão com aquele embrião cujo coração já havia parado de bater, apesar de ainda estar dentro de mim, que não era muito possível de ser explicada. Sentia-me mãe. Sentia-me enlutada. Fraca. Frágil. Incapaz de sustentar a vida. E não conseguia explicar em palavras todas aquelas sensações viscerais. Palavras como “você é jovem e ainda poderá ter muitos filhos” não aplacavam, em absoluto, a minha dor.Na lógica da Alma, meu corpo e meu coração entendiam tudo. Na lógica da Alma, sentia meu filho em mim, ainda que soubesse que ele não iria nascer. De certa forma, ele habitou em mim – e eu sei que segue habitando.
Na lógica do corpo e da minha humanidade, eu era toda DOR.
Ali nasci como mãe, de um modo muito sutil ainda, mas sim, foi um nascimento. Em meio `a tristeza, culpa, medo, dor, insegurança, a partir dali sabia que não estava mais só. Meu ventre já conhecia o que era gestar e, mesmo que interrompido, aquele processo ativou algo em mim, acordou algo aqui dentro.
Ao meu filho cujo rosto não chegou a se formar dei o nome de Miguel. Pela lógica da Alma, que aprendi com as Constelações Familiares, dei a ele o lugar de filho mais velho em meu coração, meu primogênito. Com ele, aprendi a me aceitar mais humana, aprendi a deixar algumas ilusões e a rever algumas histórias que passei a vida contando para mim mesma. Vi a vida estagnada dentro de mim, descobri que tinha algo que não estava pronto para dizer sim para a vida e sua organicidade muitas vezes caótica. E por mais que doesse, através de alguma compaixão própria pude começar a empreender o caminho de me amar de verdade e de ver que o lugar do amor por mim mesma vinha sendo preenchido com muitas ilusões. Ilusões de segurança, de ideais e fantasias que não correspondiam ao meu coração, mas traziam vantagens secundárias que não me deixaram saltar rumo à vida pulsante.
Com Miguel aprendi a me ver pequena, sem querer me engradecer para não me apequenar ainda mais. Aprendi a reconhecer a tirania que habitava dentro de mim e a começar a aceitar o tempo das coisas, o meu tempo de amadurecimento, a me abrir para crescer de verdade, desde o núcleo simples do meu coração. Com meu primogênito, comecei a aprender sobre meus limites humanos, minhas dificuldades, minhas fragilidades, minhas dores escondidas, minhas pendências emocionais, meus contornos. Foi um aprendizado doído, mas que ralou uma parte da minha casca grossa, me preparando e me abrindo ao verdadeiro amor.
Sinto que ali foi plantada a semente de toda a desconstrução que a maternidade vem fazendo comigo. O processo de amadurecimento muitas vezes tem disso, é preciso tirar muita tranqueira que obstrui o caminho para que a essência que nos habita possa finalmente aparecer.
Hoje, no auge da minha realização e do meu cansaço de mãe de um bebê de 1 ano e 3 meses, caminhante e cheio de vida, com tudo de pulsante e de trabalhoso que isso traz, vejo a vida renovada dentro de mim, mas também me vejo tocando cantos bem frios e escuros internamente. Às vezes me assusto. Às vezes celebro porque lembro que a vida está pulsando com tudo de visceral que sua pulsação traz.
Nesse momento, sinto necessidade de expressar, de escrever sobre o que vivo nessa estação em que me encontro. Precisava começar por aqui. Por Miguel, meu embrião que fertilizou o meu ventre e me ensinou a reconectar ao ciclo da vida-morte-vida, que renova o fluir de ser mulher e estar viva nesse mundo! Obrigada, meu filho. Daqui, seguiremos...
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